domingo, 17 de julho de 2011

Kata - Conceitos e Pensamentos

Muitas são as interpretações feitas acerca dos efeitos do treino de Kata para o desenvolvimento do praticante de Karate.

Para alguns não passam de movimentos realizados com o objectivo de ganhar taças, para outros uma obsessão por saber o maior número deles de modo a mostrar o seu valor como karatecas e ainda há aqueles que não percebem muito bem qual a sua finalidade para o treino.

Espero que este artigo possa clarificar certos aspectos da prática dos Kata que, para muitos de nós, permanecem num certo obscurantismo, tanto devido ao desconhecimento desses aspectos por quem os ensina ou ainda a tentativa de criação de uma aura da mistério em torno deles.

Considero o Kata como uma representação de movimentos baseados em formas de combater e que também visam o desenvolvimento dessas formas. Qualquer pessoa com o mínimo de habilidade mental e conhecimento técnico conseguiria construir um Kata, só que com a diferença, em relação aos tradicionais, de provavelmente não cristalizar as formas de lutar que outrora se mostraram eficientes, nem tão pouco ter a componente medicinal muitas vezes evocada na construção dos mesmos pelos antigos mestres (o Sanchin tradicionalmente tem uma componente medicinal através do tipo de respirações e dinâmica corporal que utiliza).

Há quem defenda que o Kata tem um propósito simples, não se baseando em teorias complicadas ou propósitos transcendentes, sendo simplesmente uma coesão de movimentos que os seus criadores utilizavam não só para relembrar lições importantes mas também para criar conceitos holísticos. Baseando-nos nesta hipótese, o Kata, quando aprendido por si só, não tem utilidade em termos de defesa pessoal, sendo sim utilizado como o culminar de lições importantes já aprendidas. Assim, a tríade do Karate - Kihon, Kata e Kumite - não são conceitos fechados, mas sim, situações práticas contíguas e comunicantes que, opino eu, devem ter uma continuidade lógica durante o treino tendo sempre como propósito a defesa pessoal.


Desenvolvendo a força interior através da prática de Kata.


Para a sua correcta execução devemos seguir as seguintes regras:

1. Eliminar as distracções externas e concentrar-se apenas na sua intenção;

2. Coordenar a respiração e sincroniza-la com a actividade muscular. Quando se esticar o braço, expirar até parar, mas conservar sempre 50% do ar. Deve-se ter a atenção de nunca expirar todo o ar num só momento. Quando se inspira, o nosso corpo torna-se leve. Quando expiramos, o nosso corpo fica enraizado.

3. Ouvir a respiração e ficar atento a todas as partes do nosso corpo.

4. Deve haver uma contracção muscular constante mas flexível nos seguintes grupos musculares: deltóide, trapézio, grande dorsal, dentados e peitorais.

5. Para promover uma respiração diafragmática perfeita, a espinha deve estar paralela ao estômago.

6. As técnicas são executadas para a frente e para trás de modo aos cotovelos tocarem na cintura.

Ao compreender as normas físicas e metafísicas do duro e do suave (ganrou em Mandarim e Goju em Japonês) temos de aprender que é o balanço equitativo entre os dois que permite triunfar o maior adversário de todos, nós próprios.

A dureza representa a força material do corpo humano e a agressividade de cada um. A suavidade representa a tranquilidade do nosso carácter e a elasticidade em ceder perante uma adversidade. Juntos, são atributos que se revelam através de uma análise contínua e um compromisso genuíno.

Cada um deve opor a força à flexibilidade e vice-versa. Todo o movimento do corpo, incluindo a esquiva e as manobras evasivas, deve ser executadas com uma respiração correcta. O corpo deve ser flexível como um galho de salgueiro sujeito a uma ventania; ele cede com a força do vento, mas quando esta termina, o galho espontaneamente volta à sua posição inicial. Quando se inala e o corpo se estica, ele parece uma onda gigante sem qualquer resistência. No entanto, quando uma posição estável é necessária e o ar é expelido dos pulmões enquanto se contrai os músculos, ficamos estáticos, como uma montanha.

O Kata é um método ritualizado através do qual os segredos da defesa pessoal são transmitidos de geração em geração. Cada Kata representa uma miríade de cenários possíveis de defesa pessoal - enganando-se pois aqueles que separam as técnicas de Kata No Bunkai (aplicação do Kata) das técnicas de defesa pessoal como se fosse algo de diferente - mas é mais do que uma simples combinação de técnicas. Assim, cada Kata é uma tradição única com princípios, estratégias e aplicações distintas. A aplicação das formas são concebidas para o uso em situações de defesa pessoal de vida ou morte e assim podem ser usadas para controlar, magoar, mutilar ou mesmo matar alguém quando necessário.
Um segundo mas igualmente importante aspecto do Kata é a sua utilidade terapêutica. Os vários paradigmas de imitação dos animais e os padrões respiratórios foram utilizados para melhorar a circulação sanguínea e a eficiência respiratória, estimular a energia ki, estender e fortalecer os músculos, fortalecer os ossos e tendões e massajar os órgãos internos.

Executar um Kata desenvolve igualmente a coordenação, utiliza esforço de torção e promove a rotação da anca. Assim, vai permitir o incremento da biomecânica de cada um e um desempenho óptimo utilizando energia limitada. Através da regulação da respiração e sincronizando-a com a expansão e contracção da actividade muscular vamos promover a oxigenação do sangue e a aprendizagem de como criar, conter e libertar a energia ki. O ki pode levar a um considerável efeito terapêutico para o corpo, quer interna quer externamente.

O mestre Wu Bin do Instituto de Investigação do Gongfu Chinês descreve o Kata como de importância vital para a mobilização e guia da circulação interna de oxigénio, para o balanceamento da produção de hormonas e para a regulação do sistema nervoso.

Quando se executa um Kata correctamente cada um deve promover a sua energia corporal e não se cansar excessivamente. Quando em posturas baixas, as costas devem estar direitas, os ombros baixos, queixo para fora, pélvis puxada para cima, os pés firmemente implantados e o corpo flexível de modo a que os canais de energia possam ser plenamente abertos e os alinhamentos apropriados cultivados.

O grupo de alinhamentos únicos que são cultivados pelos Kata ortodoxos permite a abertura dos canais do corpo permitindo que a energia flua espontaneamente. O ki consegue assim "limpar" o sistema nervoso e regular a função dos órgãos internos. Em resumo, a prática regular dos Kata vai desenvolver um corpo saudável, reflexos rápidos e uma técnica eficiente, ajudando a preparar uma resposta mais efectiva para situações potencialmente perigosas.

Outro aspecto importante quando falamos em Kata é a sua origem histórica. Eu próprio durante a minha prática nunca tive acesso a esta e ao propósito do Kata que praticava, criando em mim um vazio pois a sua finalidade era "decorá-lo" para obter êxito em exame. Ao conhecermos a história de um Kata apercebemo-nos das circunstâncias em que foi feito, da sua origem, do seu trajecto, dos protagonistas, etc. o que permite dar sentido a sua execução e conhecer o seu propósito na altura em que foi criado. Além disso a sua história constitui um estímulo positivo, ao saber que foi praticado por mestres que estão separados de nós centenas de anos e em circunstâncias muito particulares.

Infelizmente hoje em dia a prática de karate passa muito por um aprendizagem incorrecta dos Kata, segundo a minha opinião, não se objectivando a sua componente prática e os pormenores que o constituem. Acredito que um Kata precisa de ser trabalhado, surgindo para nós como uma pedra em bruto que precisa de ser limada. Isto quer pela prática da forma (execução do Kata) quer pela sua aplicação prática (Kata No Bunkai). O ciclo muito característico - memorização/exame - tem de ser quebrado e é preciso conceber nos alunos e em nós próprios instrutores um conceito global, vendo cada técnica do bunkai como uma situação que representa uma parte de um suposto combate real que precisa de ser assimilada (e não decorada) e compreendida de modo a surgir espontaneamente numa situação real.

A finalidade é também muito importante, quando praticamos um Kata. Por exemplo no Naifanchin é preciso ter consciência que cada subida e descida da perna na posição naifanchin-dachi pode representar o quebrar ou o luxar da perna ou joelho do adversário. Este facto deve estar na nossa mente ao executá-lo, pois acredito que assim poderemos compreender o verdadeiro sentido para que foi construído, além de aperfeiçoar biomecanicamente a execução de tal movimento, já que passamos a ter consciência do objectivo daquele acto.

Outro exemplo é o Kata Sanchin, que representa, segundo o seu nome, o combate entre o corpo, a mente e o espírito. Deste modo apesar da sua forma não ser muito complicada, o uso da correcta respiração, contracção muscular e movimento durante o condicionamento executado por um companheiro torna-o uma prova muito dura de superar fazendo pleno uso das três componentes acima mencionadas, derivando daí o seu nome - o Kata das três batalhas.
Posto isto podemos verificar que bastaram dois pequenos conceitos (o conhecimento do porquê da subida e descida do membro inferior no primeiro Kata e do significado do segundo Kata) para alterar o nosso conceito dos mesmos e construir a unidade lógica que constitui cada Kata.

Itosu em 1908 numa das suas dez instruções (ver site) refere: A propósito dos Kata de karate é necessário treinar-se repetindo-os o mais possível. Mas é absolutamente essencial conhecer o significado e a aplicação de cada técnica. É necessário saber que existem numerosos ensinamentos orais complementares aos Kata para as técnicas de ataque, de defesa, de desprendimento e de agarrar.
Enquanto ensinava os seus estudantes e explicava as diferenças básicas entre as escolas de Itosu e Higaonna, Kenwa Mabuni prestava uma maior atenção aos Kata. Ele acreditava que os Kata, que combinavam técnicas de ataque e de defesa, eram a parte mais importante do Karate-Do, e que era necessário entender o significado de cada movimento e executá-lo correctamente. Kenwa Mabuni foi o primeiro a introduzir o conceito do Bun-kai Kumite e do Hokei Kumite, que demonstram o propósito e mostram o uso correcto de cada Kata. O resultado final do treino apropriado do Kata e Kumite é a possibilidade de aplicar as técnicas de karate-do no Kumite livre. A prática do Kata também ajuda a transmitir os conhecimentos em si codificados para a geração seguinte.
De acordo com Kenwa Mabuni o estudante ignorando o Kata e praticando apenas Kumite, nunca irá progredir no Karate-Do e nem irá entender o seu significado.

Taiji Kase - 9º Dan de Karate-Do Shotokan-Ryu - conta que os mestres seniores diziam que Yoshitaka Funakoshi (filho do pai do Shotokan - Gichin Funakoshi), quando fazia um Kata, levava a assistência a perceber uma sensação especial e uma tremenda impressão de perigo iminente. Isso levava-os a dizer que era assim que se devia fazer os Kata. Também segundo Kase, os que observam a execução de um Kata devem sentir e notar algo que provêm das vibrações da nossa força interior e determinação. Se os que observam não sentem nada, o Kata não está a ser bem realizado, é como uma "ginástica ou baile".

Ao analisarmos os três parágrafos precedentes que dizem respeitos a afirmações de figuras de inegável respeito e conhecimento no universo do karate, podemos concluir que a prática de Kata deve ser constante e séria, que é de extrema importância para a defesa-pessoal e que a forma de executá-lo deve transmitir o poder de quem o faz.

Gostava de dizer que dou grande importância à prática correcta do Kata e faço uma análise deste processo como um meio para atingir um objectivo (a eficiência em combate real, melhoramento da condição física, etc.) e não um fim por si só.
Nunca admirei um mestre por saber muitos Kata, pois quantidade nunca significou qualidade. Mais importante é a sua capacidade humana e técnica, que faz com que ao entra-rem no Dojo a sua presença se sinta de imediato e que quando praticamos com eles ou os vemos em acção constatemos o seu enorme potencial.



Considero que cada um de nós deve procurar a verdade daquilo que pratica e não cair naquilo que o grande mestre "Bushi" Matsumura (1809-1901) relata como:
Arte marcial do intelectual - "pensamos em diferentes formas de treino sem as aprofundar. Conhecemos numerosas técnicas mas a prática é como uma dança sendo incapazes de as aplicar em combate. Não se é melhor que uma mulher" (com todo o respeito pelas mulheres acrescento eu).
Arte marcial do pretensioso - "agitamo-nos bastante sem nos treinarmos realmente, portanto, falamos muitas vezes das nossas façanhas gloriosas, causamos tumultos, desordens e ofendemos os outros. Segundo as circunstâncias arriscamo-nos à auto-destruição ou à desonra da nossa família".

Assim ele acrescenta - São inúteis as artes marciais do intelectual e do pretensioso - valorizando apenas a arte marcial do budo.

Por vezes quando treino com outros colegas vejo o quanto a prática do Kata é banalizada (e se calhar por vezes por mim também), não havendo nem a emoção nem a seriedade necessária para a sua prática, acabando-se por cair numa análise superficial em vez de profunda e completa.



Espero com este texto dar voz (com toda a humildade) a uma maioria silenciosa que pratica karate e que por vezes atravessa um abismo de desconhecimento em relação a arte que pratica.

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